CORAGEM PRA ENFRENTAR AS LOUCURAS SUTIS E A FRAGILIDADE DE SER HUMANO.
Duas perguntas que eu me fiz quando soube do trabalho da irmã Laíde junto aos presidiários: O que a motiva a fazer esse trabalho? De onde ela tira forças e coragem para enfrentar esses desafios?
A primeira pergunta foi logo respondida na minha primeira visita, mas a segunda ainda precisava de resposta. De onde ela e as pessoas que exercem esse trabalho tiram forças para continuarem a missão de ministrar o evangelho, aconselhar, orar com os presidiários do hospital psiquiátrico e levar uma mensagem de paz e esperança para eles?
Somos tentados a pensar que as pessoas que fazem esse trabalho têm algum tipo de dom especial, ou que são pessoas com algum tipo de poder extraordinário, ou que são seres espiritualmente diferenciados, iluminados. Na visita da Terça-feira passada eu pude ver quão humanos essas pessoas são.
Havíamos chegado no Hospital Psiquiátrico de custódia e como de costume, nós fizemos todos os procedimentos antes de irmos para a ala de detenção.
Há uma série de armários onde nós temos que deixar tudo que seja metal lá dentro. Moedas, celulares, chaves, relógios, tudo deve ser mantido nesses armários. Fizemos o procedimento e nos encaminhamos para o lugar de revista. Ao chegarmos lá nós nos deparamos com um comboio da polícia que aguardava a saída de um preso que iria fazer uma audiência. Por essa razão, nós tivemos que esperar. Foi quando a irmã Laíde pede a minha carteira de identidade e pra minha surpresa, lá estava o meu celular dentro do bolso!
_Droga! Eu murmurei indignado por ter que voltar a pé por quase um quilômetro até os armários só pra deixar o bendito celular.
_O que foi pastor? A irmã Laíde perguntou espantada com a minha exclamação.
_Esqueci o celular no bolso e agora terei que retornar. Vocês podem entrar, não precisam me esperar.
Fui apressado e ao passar por um outro lado do presídio eu ouço uma voz masculina a gritar ao longe:_Pastor, Pastor quando o senhor vai vir aqui? Pastor a gente precisa de visita também!
Eu procurei de onde vinha a voz, mas não conseguia enxergar ninguém, afinal de contas só estava eu na estrada. _Que estranho! Pensei comigo mesmo. Mas os gritos continuaram me chamando. Foi quando eu identifiquei o lugar de onde vinham os pedidos. Os gritos vinham da Ala reservada aos presos com transtornos mentais mais graves. Eu então respondi gritando sem saber ao certo pra quem: _EU NÃO SEI QUANDO IREI, MAS AGUENTE FIRME AÍ QUE NÓS IREMOS VISITÁ-LOS! Respondi com um grito meio contido.
Deixei o meu celular e retornei para a sala de vistoria. Ao chegar lá, encontro a irmã Laíde ainda fora juntamente com uma senhora que sempre está conosco nas visitas. Vou me aproximando e percebo um clima triste, então eu retardo os passos para não atrapalhar a conversa delas. Olho e vejo lágrimas rolando nos rostos delas. Por alguns segundo eu sinto que alguém está com a alma triste e abatida.
_Não está tudo bem. O que houve? Eu perguntei.
_São coisas da vida, pastor. Apenas peço que lembre-se de orar pela irmã Cristina e o seu esposo. Disse a irmã Laíde com a voz embargada.
_Tudo bem. Estarei orando sim.
Entramos na Ala de detenção depois de sermos revistados e nos direcionamos ao local da reunião. Eu tiro o violão e começo a afiná-lo, os presos começam a chegar, está tudo devidamente organizado, mas sinto uma certa euforia por parte de alguns presos, então percebo que alguns estão visivelmente alterados.
Toda essa agitação geraria um situação de tensão no final da reunião.
Começamos a reunião com algumas canções. Todos cantam empolgadamente e com muita energia. Parece um coral desafinado de vozes masculinas, mas o desafino é compensado pela alegria e empolgação de cada preso.
Enquanto eu tocava e cantava, um dos presos que estava alterado começa a interferir e me interromper. Ele parece querer pedir uma música, mas eu não conseguia entendê-lo. Isso se repete por duas vezes e enquanto eu tocava e cantávamos, um dos presos que exerce a função de líder entre os presos começa a repreender duramente um senhor idoso que estava interrompendo o culto.
O Rodrigo é um preso diferenciado. Ele é centrado, organizado, tem uma boa retórica, é articulado e muito expressivo. A primeira impressão que eu tive dele foi de que ele estava ali por engano. O Rodrigo não parece ter qualquer problema. Ele gosta muito de ler, está sempre pedindo para levarmos livros, Bíblias de estudos e de literatura. Ele exerce entre os presos um papel de liderança.
Mas enquanto eu tocava e cantava com os presos, o Rodrigo repreendia o outro preso visivelmente fora de si, eu intervi na situação, foi quando parei de tocar e disse:
_Rodrigo, calma aí. Deixe o moço, ele só está querendo participar. Deixe ele.
_Pastor, essa não é a primeira vez que esse palhaço atrapalha o culto a Deus. Ele não é louco coisa nenhuma! Ele é um fingido e só quer chamar a atenção. Se ele não se comportar eu vou colocar ele pra fora! Falava ele com o dedo apontado para o senhor idoso que atrapalhava o culto.
_Relaxa rapaz! Aqui todo mundo é bem vindo. Eu irei atender o pedido dele e tudo vai ser resolvido.
O Rodrigo se retira e fica sentado em um banco alguns metros atras de mim.
Eu perguntei ao senhor idoso o que ele queria e ele apenas pediu para que cantássemos o hino " Como Zaqueu". De pronto eu o atendi e todos em uma só voz começamos a cantar.
Enquanto cantamos, meu olhar não descansa ao procurar vida no olhar de cada detento. Foi então que meus olhos se cruzam com o olhar do Rodrigo que estava sentado logo atrás de mim.
Percebi nele um olhar tenso, cheio de ira, uma mistura de indignação com impaciência. Eu continuo olhando para ele e com um gesto simples pegunto mesmo de longe: _ O que houve?
Ele apenas respira fundo e com um aceno com as mãos deixa a entender que não era nada.
Continuamos o culto, agora com a mensagem do Evangelho.
Peço silêncio total por parte dos presos e como que num passe de mágica, todos se calam. Por alguns poucos segundos se pode ouvir o canto dos pardais, o som de algumas cadeiras sendo arrastadas e o barulho forte do fechar dos portões das celas.
Começo a ler o texto do evangelho de Mateus 23:43 que fala sobre a crucificação de Jesus junto com os dois malfeitores.
_ Meus queridos. Nós temos a liberdade de escolhermos como vivemos nossa vida. Assim como não podemos fugir das consequências que nossas escolhas geram. No Evangelho de Mateus, nós encontramos dois homens nos seus últimos momentos de vida. Eles estava com as mãos e os pés pregados numa cruz. Ao lado deles estava Jesus. Nessa história, nós percebemos que os dois malfeitores tinham conhecimento de quem era Jesus. Certamente eles tinham ouvido falar daquele homem que pregava o amor, que saia curando e fazendo o bem para as pessoas. Eles certamente já tinham ouvido da mensagem de perdão e de reconciliação que Jesus ensinava. Mas esses dois homens decidiram viver diferente, não deram atenção para as coisas maravilhosas que estavam acontecendo. Agora os dois se encontram em uma situação sem saída. Eles estão apenas esperando o momento da morte. Mas um deles ainda tem um último pedido e o pedido dele era para que Jesus o livrasse das consequências dos atos criminosos dele. Ele disse:
_Jesus, se tu és o Cristo, salva a ti e a nós também!
Esse malfeitor quer ter uma segunda chance para continuar a viver uma vida sem sentido, sem rumo, fazendo o que bem quisesse. Já o segundo malfeitor repreendeu-o, dizendo:
_ Nem ao menos temes a Deus, estando sob igual sentença? Nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o castigo que os nossos atos merecem; mas este nenhum mal fez. E acrescentou: _ Jesus, lembra-te de mim quando vieres no teu reino. Jesus lhe respondeu:
_ Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.
Eu voltei o meu olhar para o presos que ouviam atentamente e perguntei a eles:
_Para um malfeitor, um bandido, assassino, ladrão, pedófilo ou estuprador, haveria algo pior do que ser preso e condenado a morte?
Todos responderam com um sonoro NÃO! Não tem nada pior!
Eu então disse com o tom de voz firme e forte:
_SIM! Há algo pior! Pior que ser preso e condenado a morte! É PASSAR POR ESSA EXISTÊNCIA SEM SENTIR A FORÇA DO PERDÃO E DO AMOR DE DEUS!
Todos ficaram mudos! O silêncio retorna ao salão e eu continuo falando sobre a necessidade de arrependimento e do perdão.
Enquanto eu falo, eu ouço um grito sair de uma voz grave. Era um preso que estava ouvindo e que naquele momento, com uma voz emocionada que dizia: _Pastor, eu me arrependo de tudo o que eu fiz lá fora, pastor. Eu não aguento mais viver com essa culpa.
Parecia que a alma dele já não suportava tanta dor, tanta culpa e desesperança. Então nesse momento meu olhar procura a irmã Laíde e a encontro sentada ao lado do Rodrigo. Ela com um simples olhar como quem diz: _Faz o apelo pastor.
Eu não gosto de fazer apelo. Creio que a mudança é um processo diário, mas diante daquela situação urgente eu decidi fazer o apelo. Mas antes, eu recitei um poema.
O REI E O LADRÃO.
Meus olhos tão cansados e
Marcados pela dor
Não me importava mais a vida
Sem qualquer valor
Humilhado em uma cruz
vendo o ódio em cada olhar
Só queria ter mais uma chance
De recomeçar
Tentei num grande esforço
Contemplar na outra cruz
Quem era aquele homem que
Chamavam de Jesus
Que comigo dividia ali solidão,
Vergonha e dor...
Porque tantos lhe odiavam e
Outros lhe davam amor?!
Teu olhar me fez estremecer
E crer que ali estava o próprio Deus
Pude esquecer minha dor
Tinha ao meu lado um Rei
Morrendo por falar de amor.
Na luz do teu olhar, senti o teu perdão
Lavaste com teu sangue meu coração
Sei que este amor não tem fim
Creio que és filho de Deus
Ninguém jamais me olhou assim
Quando entrares no teu reino
Lembra de mim.
Teu olhar me fez estremecer
Em meio a tanta dor tentando
Me dizer:
"Eu te escolhi, filho meu
Ainda hoje no paraíso comigo
Estarás."
Depois de recitar o poema, todos estavam visivelmente maravilhados. Foi quando então eu convidei as pessoas que tinham entendido a mensagem e que naquele momento estavam desejosos de orar comigo pedindo perdão a Deus por seus atos, que viessem a frente. Muitos atenderam ao apelo.
Nós oramos juntos o pai nosso e quando estávamos nos despedindo, um grupo de mais ou menos sete presos me cercaram. Fiquei isolado da irmã Laíde e da Cristina. Meu pensamento foi rápido e muitas perguntas me vieram à mente: Por quê eles estão me cercando? O que está acontecendo? Era o que eu me perguntava sem no entanto deixar transparecer nenhuma preocupação.
_Pastor, eu estou muito agoniado! Disse um dos presos. O senhor pode orar por mim?
Os outros presos tem o mesmo desejo. Eles querem apenas que eu ore por eles. Mas antes de orar por eles, eu procuro saber quem eles são, se tem filhos, esposas ou netos. É incrível perceber o quanto eles se emocionam ao lembrar dos que estão aqui fora. Então eu oro por cada um. Enquanto eu oro, eu ouço uma discussão ao fundo. Era a voz da irmã Laíde que parecia querer conter um certo nervosismo. Voz essa que era abafada pelos fala alterado e visivelmente nervosa do Rodrigo.
O pior estava por vir...
São Paulo
02 de Agosto de 2016
Inverno. Lua minguante